pilha de doces
obras sobre relógios e doces, felix gonzales-torres, mansões renovadas e britney spears
existe uma instalação artística onde dois relógios de pilha ficam lado a lado, inicialmente sincronizados, com os ponteiros se movendo em ritmo igual.
aos poucos, com o decorrer dos dias e semanas, as pilhas e o próprio mecanismo do relógio se desgastam, fazendo com que os movimentos passem a ficar fora de compasso: um mais atrasado, o outro mais adiantado.
mais algum tempo e logo um deles, eventualmente, irá parar de funcionar enquanto o outro irá continuar.
a obra em questão foi feita pelo artista plástico felix gonzales-torres e exposta pela primeira vez em 1990, na galeria jay gorney modern art, em nova york. gonzales-torres, assumidamente gay, compôs a instalação para seu parceiro, ross laycock, que faleceu em decorrência de complicações relacionadas à aids um ano depois.
os relógios duplicados representam o coração e o tempo de vida de cada um deles. nomeada de “Untitled (Perfect Lovers)”, a obra conta a história de duas pessoas que, lado a lado, se aproximam, aos poucos, do fim inevitavelmente desigual de cada uma delas.
ironicamente, para que os dois possam continuar vivendo juntos o mesmo segundo, é preciso abrir mão de mais um segundo vivo, já que a cada batida, mais desgastado o relógio fica.
a instalação representa, de modo geral, uma realidade vivida por todos nós (a de que, um dia, nosso final e o de quem amamos irá chegar) e, de forma mais particular, uma tensão que só quem convive com uma ameaça concreta experimenta.
porque na vida “normal” é fácil esquecer a morte e as despedidas. pensamos nisso, no máximo, no meio da noite, ou quando atravessamos fora da faixa de pedestres.
no entanto, na época, a aids não era apenas uma doença, mas uma sentença: não só de morte física, mas também social. apesar de atingir a todos, suas vítimas não lidavam com ela em posição de igualdade e, por muito tempo, a aids dizimou uma geração de pessoas lgbt não porque eles eram mais propícios à doença, mas porque receberam menos ajuda daqueles que poderiam ajudar.
sua presença, portanto, dava um peso mais profundo a cada batida perdida pelos dois relógios. a cada volta, a linha era esticada duas vezes mais.
o tempo mudou nos tempos atuais. a noção de tempo. ele se tornou insuportável e banal ao mesmo tempo. semanas, meses e, agora, anos passam em branco, mas mesmo assim os dias se arrastam, as horas se alongam. eu espero pelo fim de semana durante cinco dias, mas passo sábado e domingo tentando dormir para que o tempo perca o seu peso, agora, desproporcional.
nossos ponteiros parecem bater mais pesados: primeiro pela ameaça constante de uma doença que pode acelerar seu fim individual, e segundo, ironicamente, porque somos incapazes de enxergar um fim a essa ameaça.
gonzales-torres também era famoso por criar obras construídas a partir de pilhas de doces. apesar de muitas terem sido feitas, uma em particular se tornou mais famosa. chamada “Untitled (Portrait of Ross in L.A.)”, a instalação é formada por uma pilha de balas embaladas em papéis celofanes coloridos. o monte de doces idealmente pesa, ao todo, aproximadamente 79 kg — o peso de seu companheiro, ross laycock.
empilhados em um canto da sala, os visitantes são encorajados a retirar uma bala. a pilha, aos poucos, se torna menor, mais fraca, menos pesada. em uma representação da doença de laycock, o tempo retira, aos poucos, as forças do companheiro do artista, tornando-o cada vez mais fraco e mais próximo de seu fim.
ao mesmo tempo, cada retirada significa um momento de alegria para alguém. cada segundo mais próximo da morte também é um segundo a ser celebrado.
apesar da tensão causada pela retirada gradual do “corpo” de ross, gonzales-torres instruiu os expositores que reabastecessem constantemente a pilha ao seu peso ideal. a ideia é que, apesar do corpo se deteriorar, ainda podemos reconstruir uma pessoa querida, basta trazer de volta os mesmos momentos “doces” aproveitados junto dela.
essa pilha de doces, constantemente diminuindo, constantemente sendo reabastecida, se tornou nossa realidade. queremos que nossas balas sejam conservadas, quietas dentro do quarto. ao mesmo tempo, retiramos freneticamente um doce do monte do tempo, ansiosos pelo fim desse período.
o que será que devemos fazer com nossas pilhas de doces? um tempo contado, pouco aproveitado, mesmo assim protegido porque é valioso. uma pilha de doces guardados para um futuro onde cada bala poderá ser melhor aproveitada. pilhas de doces que diminuem mais rápido do que outras, pilhas de doces mais ameaçadas do que outras. o que fazer com nossas pilhas de doces?
gonzales-torres deixou uma carta junto aos dois relógios. uma dedicatória a seu companheiro. nela, talvez, possamos encontrar um conselho, que nos motiva não só a valorizar nossas pilhas de doces, como também nos faz pensar sobre os doces que distribuímos enquanto podíamos (e ainda podemos):
"Não tenha medo dos relógios, eles são nosso tempo, o tempo têm sido tão generoso conosco. Nós marcamos o tempo com o doce gosto da vitória. Nós vencemos o destino nos encontrando em um certo TEMPO e em um certo espaço. Somos um produto do tempo, portanto damos crédito a quem merece: o tempo.
Estamos sincronizados, agora e para sempre.
Eu te amo”
um poema:
O tempo adiado
Vem aí dias piores.
O tempo adiado até nova ordem
surge no horizonte.
Em breve deves amarrar os sapatos
e espantar os cães para os charcos.
Pois as vísceras dos peixes
esfriaram no vento.
A luz da anileira arde pobremente.
Teu olhar pressente a penumbra:
o tempo adiado até nova ordem
desponta no horizonte.
Do outro lado afunda tua amada na areia,
ele sobe-lhe pelo cabelo esvoaçante,
ele corta-lhe a palavra,
ele ordena-lhe silêncio,
ele encontra-a mortal
e pronta para a despedida
depois de cada abraço.
Não olha para trás.
Amarra teus sapatos.
Espanta os cães.
Joga os peixes ao mar.
Anula a anileira!
Vêm aí dias piores.
- ingeborg bachmann, com tradução de claudia cavalcanti, no livro “O tempo adiado e outros poemas”.
não escrevi a newsletter anterior porque simplesmente me faltaram forças em meio ao caos vivido no mundo. me sinto dividido entre escrever algo que trate com respeito a situação atual e fornecer algo que possa tirar nossa cabeça desse momento horrível. na dúvida, estou (tentando) colocar um pouco de cada coisa.
a primeira já foi. Agora, é a vez de uma lista:
um dos meus canais favoritos no youtube ultimamente tem sido o da kaylah stroup. ela e o marido (e os seus gatos e cachorros) compraram uma mansão italiana antigaça que estão renovando aos poucos. tem uns seis quartos, sei lá quantas salas, um pátio escondido e várias coisas. ela tem muita quinquilharia esquisita e uma voz super calma, ótimo pra relaxar ou se inspirar. comece pelo primeiro vídeo aqui.
já foi na Martins Fontes da Paulista e viu aqueles livros de arte gigantes da teschen sobre decoração, pintores, arquitetura, fotografia etc.? se você, assim como eu, sempre sonhou em ter alguns pra colocar na sua (futura) mesa de centro da sala e fazer o intelectual burguês ou para se inspirar quando tiver rabiscando no caderno, agora é sua chance. a martins fontes tá fazendo um saldão na internet de vários livros, inclusive dos da teschen. tem vários desses por R$ 35, além de vários outros de outras editoras.
Assisti ontem o documentário da Britney “Framing Britney Spears”, que estreou na Globoplay. Pra quem não tava entendendo muito bem o movimento #FreeBritney, o filme dá um bom apanhado geral na história dela, o que levou à tutela legal da cantora pelo seu pai, Jamie, e expõe um sistema que beira o sequestro e o trabalho forçado. Foi produzido pelo New York Times e tem ótimas entrevistas, inclusive com o paparazzi que ela bateu com um guarda-chuva.
Pra quem tem Mubi, acabou de entrar “In the mood for love” (“Amor à flor da pele”) do diretor Wong Kar-Wai, na plataforma. Odeio falar de filme (principa,mente cults) porque, francamente, não sei se tenho muito o que dizer que não faça parecer a sugestão ou muito pretensiosa e chata ou muito pouco interessante e genérica. O longa é sobre dois casais que se mudam para um prédio em Hong Kong. A mulher e o marido de cada um deles começam uma amizade depois de desconfiarem da fidelidade de seus cônjuges. Um dos pôsteres mais lindos da história:
Outono chegou e nem sinal de clima outonal (se isso existe no Brasil). Até agora a previsão é de 30º de máxima pela próxima semana inteira e eu fico com medo de que algum dia no futuro a nossa situação chegue a ser aquele episódio de “Além da Imaginação” onde a Terra é completamente superaquecida e a humanidade vai morrendo aos poucos de tanto calor.
O novo álbum da Lana Del Rey, “Chemtrails Over The Country Club”. Eu já desisti de acompanhar as ~polêmicas~ que Lana Del Rey se envolve, que na maioria são falas péssimas dela quando recebe alguma crítica social. Ontem vi um TikTok que resume bem: “como pode uma das melhores compositoras da atualidade ser tão RUIM com palavras?”. Em todo caso, gostei muito da faixa título, de “Wild At Heart”, “Dark But Just a Game”, “Yosemite”, “Breaking Up Slowly” e “For Free”.
O “show virtual” que a Charli XCX fez esses dias. Eu vi por partes (porque ele foi pago e eu não tenho dinheiro para ver oficialmente) no YouTube e “Track 10” continua sendo uma das minhas favoritas da vida. Todo o “Pop 2” é genial e, infelizmente, pouca gente conhece (só os gays basicamente kkk). Pra mim, ela conseguiu materializar o conceito de “sad partying” ligado à solidão em forma existencial mais do que, por exemplo, a Lorde em “Melodrama”. Apesar de amar “Melodrama”, acho que “Pop 2” leva as coisas para um nível mais hardcore. Assista a performance dela de “Track 10” aqui.
Eu detesto podcasts. Não pelo conceito, respeito quem gosta, mas eu simplesmente não consigo prestar atenção. Alguns, no entanto, eu consigo ouvir porque sinto que tô ouvindo uma conversa alheia (uma das coisas que mais amo). Um que recomendo para quem gosta de filmes de terror (e sabe inglês) é o Monstrous Feminine. É um grupo de mulheres analisando vários tipos de filmes de terror a cada episódio. Dá pra descobrir coisas novas e elas apresentam várias teorias de interpretação.
Pra quem ficou obcecado com a história do Armie Hammer como eu, esse artigo da Vanity Fair sobre a história da família dele é uma boa não só pra entender a coisa toda como também para descobrir porque gente rica é assustadora.
A série antiga da Disney Channel, “Lizzie McGuire”, já tá disponível do Disney+! Pra quem amava, como eu, já dá pra reassitir quando quiser rever looks horríveis dos anos 2000. Lizzie McGuire era um dos poucos programas sem o humor pastelão exagerado de outras séries da Disney. Ela tinha vários episódios sobre temas relevantes, mas é meio absurdo ver como alguns deles não foram tão bem trabalhados como a gente pensava, como no dia em que a Miranda desenvolve bulimia em dois ou três dias e se cura no outro (??).
Algumas fotografias em quebra-cabeça e exposições em letreiros de rua de Felix Gonzales-Torres:




Até a próxima,